Notícias do Tocantins - No coração do Jalapão, onde o Cerrado mostra sua resistência e força entre dunas e veredas, uma tradição ancestral resiste ao tempo: a farinhada de jatobá. Realizada todos os anos no segundo semestre, no mês de novembro, a farinhada representa muito mais do que o processamento de um fruto nativo. É um ritual de pertencimento, de transmissão de saberes entre gerações e de valorização dos recursos naturais. 2u431n
José Batista dos Santos, conhecido como Zé Mininim, de 57 anos, é um dos guardiões desse saber. Há duas décadas, ele e sua família produzem farinha de jatobá na Fazenda Mundo Novo, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Jalapão. O fruto, rico em ferro, cálcio, fibras e vitaminas, é um aliado valioso da segurança alimentar e da saúde comunitária.
“O trabalho com o jatobá mudou minha vida, gerou renda para minha família e faz parte da nossa história. Cada colheita nos ensina uma coisa diferente; nós cuidamos dessa terra e de tudo que ela nos proporciona e, em contrapartida, ela cuida de nós”, declara Zé Mininim.
Mulheres e homens da comunidade compartilham técnicas, histórias e valores que resistem ao tempo e se adaptam às mudanças, perpetuando esses saberes para as novas gerações. Cada etapa do processo, desde a coleta do fruto no Cerrado até o destino final, carrega técnicas acumuladas por décadas.
“Essas práticas colaboram para manter o Cerrado de pé, geram renda e segurança alimentar para os produtores rurais. Além disso, mantêm o modo de vida das comunidades tradicionais”, afirma Rejane Ferreira, supervisora da APA do Jalapão.
Esse ciclo de aprendizado coletivo fortalece os vínculos comunitários e mantém viva a relação respeitosa com a natureza, transformando o agroextrativismo em uma verdadeira escola do Cerrado.
"A gente tem muito orgulho da nossa história, do nosso cultivo”, diz Zé Meninim, emocionado. “Aqui (Jalapão) tudo isso faz parte do que aprendemos na vida. Então o jatobá é a nossa história, quem a gente é. Catamos o fruto, tiramos a polpa e fazemos a farinha, isso foi ensinado pelos mais velhos e amos para os mais novos. Quando a farinha é vendida, é um pedacinho do nosso Cerrado que vai pro mundo, por isso, é nosso dever preservar essa terra, que vai ser o futuro das outras gerações”, finalizou.
Rede Jalapão: União que transforma frutos em renda
A história de Zé Meninim é uma entre muitas que compõem a Rede Jalapão de Produtos Artesanais, criada em 2006. Formada por famílias agroextrativistas dos municípios de Mateiros, São Félix e Novo Acordo, a rede promove o uso sustentável dos recursos do Cerrado e gera alternativas de renda para as comunidades que vivem dentro e no entorno das unidades de conservação da região.
Por meio da coleta responsável, do beneficiamento artesanal e da venda direta ou em feiras, a Rede fortalece a economia local e a autonomia das comunidades. O extrativismo do jatobá, do buriti, do pequi e de outras espécies nativas já se consolida como estratégia de permanência no território e de resistência sociocultural frente às pressões do desmatamento e do avanço da monocultura.
É dentro desse contexto que surge também a história de Deusenir José, moradora da região do Rio Novo, que viu na fruta puçá, conhecida como “jabuticaba do Cerrado”, uma oportunidade antes ignorada. “A fruta era desperdiçada. Vi uma oportunidade e comecei a fazer geleia”, conta. A novidade chamou a atenção, e o sucesso foi tanto que sua criação virou ingrediente de drinks servidos a turistas, e hoje a demanda é maior do que a produção.
A geleia, rica em vitamina C e compostos antioxidantes, é um exemplo de como o extrativismo pode ir além da sobrevivência: ele também representa inovação, protagonismo feminino e valorização da biodiversidade.
Do Cerrado para o mundo: Os produtos que nascem deste bioma
Do doce de buriti à castanha de baru, do óleo de pequi à cestaria feita com fibras de piaçava e talos de buriti, tudo carrega a identidade de um povo que aprendeu a viver com o bioma e não contra ele. Essa sabedoria ancestral é, hoje, também uma resposta às crises atuais. Dentro da luta por justiça climática, preservar o Cerrado se faz necessário.
Segundo análise feita pelo MapBiomas publicada em 2024, com dados referentes ao ano de 2023, o Cerrado já perdeu mais da metade de sua vegetação nativa, sendo o segundo mais ameaçado do Brasil. Valorizar os povos tradicionais que atuam no agroextrativismo sustentável é reconhecer que o cuidado com o meio ambiente está conectado ao cuidado com as pessoas.
O Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), órgão ambiental do governo do Estado, atua na preservação do Cerrado e na proteção das comunidades tradicionais, desempenhando a gestão das unidades de conservação, além de garantir a conservação do bioma em diversas frentes, como na educação ambiental, no combate a incêndios florestais e no apoio a atividades sociobiodiversas nas comunidades tradicionais. O órgão também possui projetos voltados para a preservação de plantas que estão em risco de extinção e apoia a utilização sustentável dos recursos naturais do Cerrado pelas comunidades locais, auxiliando nas etapas de produção.
Conhecer histórias como a do senhor Zé Mininim e Dona Deusa nos mostram que a bioeconomia não é um conceito distante ou limitado à Amazônia. Ela é uma realidade no cerrado, nos quintais produtivos, nas farinhadas comunitárias, nas garrafas de geleia e nas redes de comercialização solidária que conectam o local a um contexto maior. Quando produtos como a farinha de jatobá ou a geleia de puçá chegam às feiras ou aos turistas, carregam não apenas nutrientes, mas também histórias, saberes, raízes, resistência e, sobretudo, amor pela tradição cultural.
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